quinta-feira, 25 de novembro de 2010

IDENTIDADE SURDA




Os defensores da língua de sinais para os surdos afirmam que é só de posse desta, considerada “natural”, adquirida em qualquer idade, que o surdo constituirá uma identidade surda, já que ele não é ouvinte (Perlin, 1998; Moura, 2000). A maioria dos estudos tem como base a idéia de que a identidade surda está relacionada a uma questão de uso da língua. Portanto, o uso ou não da língua de sinais seria aquilo que definiria basicamente a identidade do sujeito, identidade que só seria adquirida em contato com outro surdo. O que ocorre, na verdade, é que, em contato com outro surdo que também use a língua de sinais surgem novas possibilidades interativas, de compreensão, de diálogo, de aprendizagem, que não são possíveis apenas por meio da linguagem oral. A aquisição de uma língua, e de todos os mecanismos afeitos a ela, faz com que se credite à língua de sinais a capacidade de ser a única capaz de oferecer uma identidade ao surdo.
O que está por trás de tal afirmativa não é simplesmente uma questão de identidade social, mas, mais especificamente, uma identidade concebida a partir de um determinado pressuposto teórico. Ao tomar a língua como definidora de uma identidade social, ainda que se leve em conta as relações e os conflitos relativos às distintas posições ocupadas por grupos
sociais, enfatiza-se o seu caráter instrumental. Assim, sua natureza, ou sua significação social, passa a ser creditada às interações sociais às quais está ligada. Mas o fato é que não existe uma identidade exclusiva e única, como a identidade surda. Ela é construída por papéis sociais diferentes (pode-se ser surdo, rico, heterossexual, branco, professor, pai etc.) e também pela língua que constrói nossa subjetividade. Utilizando a expressão de Cameron et al. (apud Lopes, 2001, p. 310), “a pessoa é um mosaico intrincado de diferentes potenciais de poder em relações sociais diferentes”. Nesse caso, não há escolhas nas nossas identidades, isso independe da nossa mera vontade. Elas são determinadas pelas práticas sociais, impregnadas por relações simbólicas de poder. E, é obvio, essas práticas sociais
e essas relações simbólicas de poder não são estáticas e imutáveis ao longo da vida dos sujeitos. Se a identidade está relacionada a práticas sociais de uma complexidade muito maior, por que a língua, e apenas ela, é tomada como o instrumento por excelência de sua constituição e definição? Qual é o significado dessa inversão, desse jogo teórico que toma a língua, num primeiro momento, como determinada pelas práticas e interações sociais e, num segundo, faz dela a definidora dessas mesmas práticas?

Para ilustrar melhor essa questão, que nos remete ao problema da
constituição da identidade, vejamos alguns relatos:

Paula: //
fala. Eu olhava para sua boca e não compreendia. Não sabia por que eu não
podia falar. Ficava decepcionada //
por que eu não podia falar (...) Surdo nasce. A mãe ensina a falar, a estudar.
Não sabe sinais. Não pode fazer sinais. Fazer sinais implica ser acomodado e
não falar. Assim, ele cresce sem conhecer sinais e aprende a falar desde pequeno.
Cresce sem nunca ter encontrado outro surdo. Um dia, ele vai passando
na rua e encontra um surdo fazendo sinais. Ele olha para os movimentos
das mãos e estranha. Pergunta ao surdo: “Você não ouve?”. “Não.
Sou surdo. Todos aqui são.” “Eu também sou. Eu não escuto. Eu só falo.”
Vê os sinais e pergunta: “O que é isso? Eu não sei. Eu queria aprender”. Ele
começa a aprender língua de sinais. Depois, em casa, com a família, não se
sente bem em falar. Não quer mais falar. Quer aprender a língua de sinais.
escreve “pensei que eu era a única surda do mundo” // Porque ouvinteescreve “decepcionada” // Tentei descobrir7
Emanuelle Labourit (1994): Não havia compreendido que eu era surda. Somente
que existia uma diferença (op. cit., p. 25). Nunca havia visto surdos
adultos, portanto, na minha cabeça, os surdos nunca cresciam. Iríamos morrer
assim, pequenos (op. cit., p. 32). Essa lógica cruel permanece enquanto
as crianças surdas não se encontram com um surdo adulto. Elas têm necessidade
dessa identificação com os adultos, uma necessidade crucial. É preciso
convencer todos os pais das crianças surdas a colocá-las em contato o mais rápido
possível com adultos surdos, desde o nascimento. Ela se construirá longe
daquela solidão angustiante de ser a única no mundo, sem idéias construtivas
e sem futuro (op. cit., p. 49). Para quem se habituou a virar a cabeça
ao chamado de seu próprio nome, é talvez difícil entender. Sua identidade
está dada desde o nascimento. Não têm necessidade de pensar nela, não se
questionam, sobre si mesmos. São “eu”, naturalmente, sem esforço. Eles se
conhecem, se identificam, se apresentam aos outros com um símbolo que os
representa, mas a Emanuelle surda não sabia que ela era eu (op. cit., p. 51).
Naquela idade, sentia-me pouco como uma estrangeira em minha própria
família. Não tinha cumplicidade com alguém semelhante a mim. Não podia
me identificar (op. cit., p. 56). Eu tinha [após a aquisição da língua de sinais]
tantas perguntas a fazer. Tantas e tantas. Estava ávida, sedenta de respostas
que podiam me responder (op. cit., p. 52).
Investigadora: Explica pra mim um pouco como é essa questão de identidade
surda que você falou. Como é que é isso?


O discurso reconstrói as trajetórias de isolamento social de cada uma e faz da língua de sinais o passaporte de entrada para o universo social. Só que o universo social não se esgota aí. A partir do momento em que essa entrada teve início, o sujeito poderá ocupar novas posições sociais e ampliar as possibilidades ligadas a uma multiplicidade de práticas e interações sociais. A inserção no universo social teve, portanto, apenas início.
Ao que parece, a constituição da identidade pelo surdo não está necessariamente relacionada à língua de sinais, mas sim à presença de uma língua que lhes dê a possibilidade de constituir-se no mundo como “falante”, ou seja, à constituição de sua própria subjetividade pela linguagem
CULTURA E IDENTIDADE SURDAS:
ENCRUZILHADA DE LUTAS SOCIAIS E TEÓRICAS
A
NA PAULA SANTANA, ALEXANDRE BERGAMO

8 e às implicações dessa “constituição” nas suas relações sociais.

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